Herança digital: STJ debate direitos de privacidade e acesso a bens de falecidos

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) está no centro de um debate crucial sobre a herança digital, ponderando os direitos à privacidade de falecidos e as questões de sucessão. A corte analisa um pedido de acesso a um computador pertencente a uma pessoa falecida, levantando discussões sobre quem deve ter controle sobre os bens digitais após a morte.
Durante uma sessão da terceira turma em 12 de agosto, a ministra Nancy Andrighi propôs a criação da figura de um "inventariante digital". Essa entidade teria a responsabilidade de acessar o dispositivo, elaborar uma lista do conteúdo para o juiz, que então decidiria o que poderia ser compartilhado com os herdeiros. A ministra argumenta que essa abordagem visa prevenir violações da privacidade do falecido ou de terceiros cujos dados possam estar no dispositivo.
"É uma experiência para a qual não estamos preparados ainda, porque é uma novidade. O direito digital interferiu ativa e violentamente sobre o Código de Processo Civil", destacou a ministra.
O caso em questão no STJ envolve a mãe de Anna Carolina Trench Agnelli, que busca autorização judicial para acessar o computador da filha, falecida em 2016 em um acidente aéreo que também vitimou outros familiares.
Por outro lado, a advogada Silvia Marzagão, sócia do escritório Silvia Felipe Marzagão e Eleonora Mattos Advogadas, aponta que delegar a decisão ao juiz pode ser problemático para os direitos dos herdeiros. Ela ressalta que a discussão sobre o tema, especialmente em um âmbito tão amplo como no STJ, é inédita. "É a primeira vez que se analisa mais a fundo o destino dado a esse material que se convencionou de chamar de herança digital, esses bens de natureza digital", afirma Marzagão, defendendo a necessidade de classificar o que é patrimônio (como bitcoins) e o que é pessoal (e-mails, fotos, mensagens).
Alexandre Kassama, tabelião e diretor do Colégio Notarial do Brasil em São Paulo, adiciona que os perfis em redes sociais complicam ainda mais a situação. Para ele, o cerne da questão não é o digital em si, mas a confusão que as plataformas criam entre privacidade e patrimônio, comercializando o que é apresentado como vida privada. Exemplos como os perfis de Gugu e Marília Mendonça, com milhões de seguidores e potenciais fontes de receita, ilustram a complexidade de definir o destino dessas contas, que podem incluir conteúdos inéditos como músicas não lançadas no caso da cantora.
Kassama sugere que soluções já existentes no "mundo analógico" poderiam ser aplicadas, sem a necessidade de criar novas figuras jurídicas. Ele cita a publicação póstuma de obras de Gabriel García Márquez como exemplo de como questões semelhantes já foram tratadas. "Não tem função em se criar mais uma figura só para o direito digital. As figuras do mundo analógico podem lidar com isso conforme a questão se torne uma preocupação dos testadores", defende.
Marzagão concorda que a criação de novas figuras pode prolongar e encarecer os processos de inventário, defendendo a transferência integral do patrimônio digital aos herdeiros. Ela diferencia essa proposta de soluções já existentes em sistemas operacionais, que permitem ao usuário definir o destino de sua conta após a morte, seja como memorial, exclusão ou acesso limitado, mas sem permissão para ver mensagens privadas ou movimentações.
Paulo Doron, professor da FGV Direito SP, sugere que peritos ou oficiais de justiça, sob determinação judicial, já são mecanismos previstos no Código de Processo Civil que poderiam ser utilizados. Ele considera que a ministra pode ter tentado inovar em um campo sem jurisprudência, mas que estruturas já existentes poderiam resolver a questão.
Kassama vê esse impasse como uma consequência da democratização do acesso à internet, prevendo que a sociedade se adaptará, incluindo essas preocupações nos testamentos. A ministra Nancy também mencionou a falta de clareza em projetos de lei e no novo Código Civil sobre como lidar com esses casos.
Doron critica projetos de lei sobre herança e direito digital por apresentarem regras sobrepostas e conflituosas, como a proibição de acesso a mensagens privadas por herdeiros sem considerar outras mídias, ou o foco em dados na nuvem em detrimento de arquivos físicos em HDs. Ele ressalta que, mesmo com aprovação, tais projetos ainda exigiriam interpretação judicial.