Histórico de atrasos no PDDU revelam crise de planejamento urbano de Salvador e do interior baiano; entenda

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) é amplamente reconhecido como ferramenta essencial para compreender, organizar e guiar o crescimento das cidades. No entanto, passados 25 anos desde o início das discussões sobre sua relevância, grande parte dos municípios baianos ainda carece de propostas claras ou atualizadas para estruturar seu desenvolvimento urbano.
Este documento, respaldado pela Constituição Federal e pela Lei Federal nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, serve como o principal mecanismo para orientar o futuro das áreas urbanas. A legislação determina que o PDDU aborde temas cruciais como mobilidade, habitação, infraestrutura, meio ambiente e, fundamentalmente, a participação popular. Embora o Estatuto da Cidade recomende sua elaboração para municípios com mais de 20 mil habitantes, sua implementação enfrenta barreiras políticas, técnicas e orçamentárias, especialmente nas cidades do interior.
A Bahia reflete esse cenário desafiador. Estimativas do Censo IBGE de 2022 (o texto original mencionou 2024, mas o último censo divulgado é 2022) indicam que o estado possui pelo menos 165 municípios com população superior a 20 mil habitantes. Contudo, um levantamento aponta que, entre os planos de governo dos prefeitos eleitos, a ideia de "Desenvolvimento Urbano" aparece de forma explícita em apenas 100 propostas.
Para o antropólogo e professor emérito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Ordep Serra, essa situação representa um retrocesso. Ele define o PDDU como um "projeto amplo" com "escopo temporal amplo", alertando que "Não ter um plano diretor de desenvolvimento urbano é uma irresponsabilidade muito grande". Ele critica planos "imediatistas", citando Salvador como exemplo.
Na capital baiana, a situação não é menos complexa. Quase uma década após sua última atualização significativa (sancionada em 2016), a tramitação de um novo PDDU na Câmara Municipal de Salvador (CMS) ainda depende de trâmites burocráticos. O prefeito Bruno Reis justificou em 2023 que abrir a discussão geraria "grande instabilidade" para investidores, optando por adiar o debate para "mais para a metade ou final do ano que vem".
É importante ressaltar que a obrigatoriedade legal do Plano Diretor, conforme o Estatuto da Cidade, aplica-se apenas a municípios com mais de 100 mil habitantes. Na Bahia, dezenove cidades se enquadram nessa faixa populacional: Salvador, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Camaçari, Juazeiro, Lauro de Freitas, Itabuna, Ilhéus, Porto Seguro, Barreiras, Jequié, Alagoinhas, Teixeira de Freitas, Eunápolis, Simões Filho, Paulo Afonso, Luís Eduardo Magalhães, Santo Antônio de Jesus e Lauro de Freitas. Ainda assim, a atualização e o planejamento são indicados e apoiados por especialistas para cidades com mais de 20 mil habitantes.
A urbanista Marlene Costa, professora da Ufba, enfatiza que "O PDDU não é um documento para ficar na gaveta. Ele deve ser um pacto vivo entre governo e sociedade, constantemente revisado". O urbanista Marco Bau Carvalho complementa, defendendo que o plano deve estruturar o crescimento "de forma equilibrada, considerando uma dimensão social, humanitária e coletiva", refletindo os "interesses coletivos", mas reconhecendo que na Bahia há um histórico "jogo de interesses".
A realidade no interior acompanha o quadro geral. Embora o Estatuto da Cidade estabeleça um prazo de oito anos para a atualização dos planos, a maioria dos municípios opera com documentos defasados ou sequer inicia o debate sobre um novo plano. Um levantamento com os planos de governo dos prefeitos eleitos identificou propostas de atualização ou elaboração do PDDU em apenas 29 dos 417 municípios, representando cerca de 10% das cidades com mais de 20 mil habitantes. Adicionalmente, a pesquisa MUNIC do IBGE de 2022 revelou que apenas 26 cidades baianas possuíam Plano Diretor de Drenagem Urbana, vital para prevenção de desastres ambientais.
A aliança entre grande parte das câmaras legislativas e as prefeituras no estado facilita aprovações sem maior oposição, replicando dinâmicas vistas na capital. Ordep Serra criticou o processo de elaboração do PDDU de Salvador, mencionando que a consulta popular realizada no projeto "Participa" foi "completamente ignorada". Ele denuncia a falta de envolvimento da Câmara de Vereadores e a aprovação apressada, comparando os vereadores a "lagartixas do prefeito".
O atraso na gestão dos PDDUs não é novidade. Um artigo de 2021 analisando 16 grandes cidades do interior baiano, por Francisco de Queiroz e Hélio Cunha, apontou que os planos existentes "são legislações desatualizadas, sem funcionalidade e sem eficiência prática", muitas vezes existindo "apenas para cumprir a obrigatoriedade legal". Ordep Serra, que participou do "Participa" em Salvador, vai além e classifica o PDDU de 2016 como uma "ficção", um "PDDU fake", elaborado por equipe externa sem conhecimento local, sem estudos aprofundados, com propostas "feitas no vazio" e desfigurado por emendas na Câmara.
O urbanista Marcos Bau Carvalho, que estudou o PDDU de 2008, vê o processo de emendas como um instrumento de afastamento entre gestão e população, onde a "vontade política dos governantes domina o PDDU". Ele avalia que as emendas historicamente atendem a "interesses específicos", e a falta de consulta pública reforça o distanciamento, configurando um "problema estrutural" onde o poder público "dribla os mecanismos de participação social". A ausência de penalidades legais para prefeitos que não atualizam os planos contribui para o ciclo de omissão, que Bau descreve como um "jogo de teatro histórico e sem fim". Para ele, o que move as decisões não são boas práticas de planejamento, mas "o poder e os interesses econômicos que se escondem por trás de cada emenda".
Um dos maiores entraves é a revisão dos planos existentes, muitos dos quais não são atualizados desde suas versões originais e não dialogam com as dinâmicas urbanas atuais, como o crescimento desordenado, a especulação imobiliária e os efeitos das mudanças climáticas. Jequié é citada como uma rara exceção que discute uma atualização recente.
Para além de orientar o uso do solo, o plano diretor é uma oportunidade para gestores e comunidade construírem ações que melhorem as condições urbanas e ambientais. O futuro das cidades baianas dependerá fundamentalmente da capacidade de transformar o PDDU de um documento burocrático em um instrumento vivo e efetivo de desenvolvimento, inclusão social e sustentabilidade.
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