São João dos tambores: Conheça a história do samba junino em bairros populares de Salvador

Em meio à efervescência da temporada junina no Nordeste, Salvador se destaca com uma expressão cultural singular que troca a sanfona e a zabumba pelos tambores e palmas: o samba duro junino. Essa variação estilística do samba de roda consolidou-se como uma tradição nos bairros populares da capital baiana.
Desde o Sábado de Aleluia até 2 de julho, comunidades periféricas da cidade ganham vida com ensaios e desfiles de grupos de samba junino. A pouco mais de um mês do São João, este texto explora a história, as particularidades e a relevância desse movimento cultural.
Das Raízes do Terreiro à Rua
A origem exata do movimento é incerta, mas diversas versões apontam para a forte influência das sonoridades das religiões de matriz africana, originando os "sambas de terreiro". Essa teoria é endossada por pioneiros, entusiastas e pesquisadores.
Gustavo Melo, professor de Música e mestre em Etnomusiologia pela UFBA, explica que o samba junino tem parentesco próximo com o Cabila e o samba duro, derivando do Samba de Roda. "No samba junino é corrido. A gente sai e sempre foi assim, desde quando saiu dos terreiros e foi para as ruas, foi para ir para as casas das pessoas tocando timbal, batendo e, aliás, já teve um período que era feito com pratos", detalha.
Melo ressalta que o samba, como um tronco rítmico extenso, deu origem a diversas vertentes pelo país, cada uma com sua identidade local. "Cada local tem a sua linguagem. Assim como na fala, a gente fala com sotaque diferente. Eu acho que é por aí. O samba junino vem do samba de roda. Mas é um gênero diferente do samba de roda, do Recôncavo, do samba chula. É diferente", compara.
O Fortalecimento por Meio do Movimento Social
O samba junino ganhou força por meio de seus movimentos sociais. Um marco nesse processo é o Festival de Samba Duro Junino do Engenho Velho de Brotas, criado em 1978 pelos irmãos Mário e Jorge Sacramento, conhecidos como Mário Bafafé e Mestre Jorjão Bafafé.
Inicialmente focado em grupos de samba de roda, o evento gradualmente incorporou grupos com um samba mais cadenciado. Considerados pioneiros do samba junino em Salvador, os irmãos relatam a transição. Netos de uma mãe de santo do Engenho Velho da Federação, bairro conhecido por preservar manifestações culturais afro-brasileiras, eles têm "relação com o samba desde pequeno". Mário, idealizador da Federação de Samba Duro Junino que organiza o festival, conta que a ideia surgiu ao ouvir o som dos tambores na vizinhança. "Eu tive a ideia de fazer uma festa, comentei com Jorjão e nosso primo, Doca. Eu queria fazer essa festa e convidei os três [grupos de samba duro]", relembra sobre a primeira edição. O festival chega em 2025 à sua 47ª edição.
Jorjão Bafafé pontua que, na época da criação do primeiro concurso, o samba duro "não tinha vez e nem voz". "Por isso que surgiu essa ideia. Então a gente teve que se impor da personalidade e criar diversas formas de tocar, ele é diferente", explica.
Para os irmãos, a manutenção do movimento está ligada à influência e participação da comunidade. Eles enfatizam a identidade ancestral e local: "São músicas feitas com a nossa identidade, falando da nossa terra, falando do nosso convívio, no sentido de divulgar mesmo o São João da gente. Não é um São João que tem sanfona, zabumba, é um São João que tem tambores".
A Herança e o Impacto Cultural
A ligação do samba junino com a ancestralidade afro-brasileira e as periferias impulsionou sua popularização e a formação de artistas. Pesquisador Gustavo Melo destaca que a periferia, berço do movimento, também vê novas manifestações surgirem a partir dele.
Herdeiros do samba duro junino colheram frutos, com nomes de destaque da música baiana no Axé Music e no pagodão iniciando suas carreiras nos grupos de seus bairros. Tonho Matéria, Beto Jamaica, Márcio Victor, Neguinho do Samba e Tatau são alguns exemplos. Gustavo Melo menciona que a própria origem do ritmo do É o Tchan, derivado do Gera Samba, surgiu após a participação de membros do antigo grupo nos ensaios de Samba Junino da Liberdade, adaptando músicas do grupo Samba Fama.
Melo vê a influência como uma "via de mão dupla", comparando-a à dos blocos afro, que "deram essa coisa de pertencimento" e incentivaram a mobilização da população afrodescendente.
Vagner Shrek, presidente da Liga de Samba Junino (fundada em 2011), define o movimento como um "conservatório de música na periferia". Reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial de Salvador, o Samba Junino vai além da festa, servindo como espaço para jovens aprenderem música, a comunidade desfrutar de shows gratuitos e o comércio local aquecer. "É um movimento de rua. As pessoas não pagam o ingresso para participar dos ensaios de samba junino. Ele é feito na comunidade, levando entretenimento e cultura para aquela população carente", afirma Shrek.
Samba da Resistência e Preservação da Identidade
Apesar das semelhanças com outras vertentes do samba baiano, os irmãos Bafafé e Vagner Shrek defendem a delimitação do samba junino para garantir sua sobrevivência. "Nós colocamos de Samba Duro Junino justamente para estancar o pagode, e aqui com a gente só participa samba junino", explica Mário Sacramento, ressaltando que "não tem nada a ver" misturar os estilos no dia dedicado ao samba junino.
Jorge Sacramento complementa que "o tambor é a nossa identidade cultural e musical e hoje nós estamos tendo o devido reconhecimento para isso não se perder".
Vagner Shrek reforça que Samba Junino não é qualquer grupo de samba que se manifesta no período junino. Ele possui "características próprias do segmento, a utilização do timbal, do tamborim, do surdo, é a característica do instrumento. A questão das indumentárias, o samba junino geralmente ele traz temas para a rua". Ele adverte que grupos de outros estilos, mesmo se apresentando no período junino, não se configuram como Samba Junino.
Gustavo Melo também expressa preocupação com a entrada de outros grupos: "Eles já tem outra história, são tradições diferentes. Então, se a gente busca algo para preservação, se esses grupos penetram dentro da nossa manifestação cultural, da nossa festa, da nossa brincadeira, pode atrapalhar".
Desafios Atuais e o Futuro
Apesar de sua presença marcante, o samba junino enfrenta desafios, como a falta de incentivo público. O Festival da Liga, por exemplo, precisou pausar no ano passado por falta de investimento. Vagner Shrek argumenta que o tombamento como patrimônio não basta; é necessário apoio financeiro, comparando-o ao patrocínio estatal aos blocos afros.
Este ano, o evento da Liga retorna com apoio da Fundação Gregório de Mattos (FGM) via edital "Samba Junino - Ano VII", mas o aporte de R$ 20 mil é insuficiente para cobrir cachês e estrutura. A 47ª edição do Festival do Engenho Velho também recebeu apoio da FGM.
Além da falta de verba, Gustavo Melo aponta a escassez de novas gerações dispostas a dar continuidade à tradição. "A minha preocupação é quanto ao surgimento de novos personagens que possam estar levando essa coisa para frente. Muitos dos que eu conheço é da velha-guarda", observa.
Nesse aspecto, os irmãos Sacramento são pioneiros, trabalhando com crianças e jovens (de 7 a 14 anos), ensaiando um "samba-mirim" que abrirá o São João do bairro. Mário relata o interesse crescente da garotada.
Para Shrek, envolver jovens no movimento afasta-os da criminalidade, pois eles reconhecem a importância cultural e social do samba junino para suas famílias e comunidade. Ele destaca a ausência de ocorrências policiais graves durante os arrastões, com a última registrada há mais de 25 anos.
Jorge Bafafé reforça o pilar comunitário e engajado do movimento: "A gente não cria essa forma de fazer o São João da ancestralidade, o São João afro, a gente estaria fora, fazendo zabumba, mas aqui no bairro é o samba. Tudo por essa criatividade que nós temos, a comunidade, a negrada tem essa criatividade. Somos muito culturais, a gente só não tem dinheiro. A gente tem a cultura e por isso a gente não abre mão", conclui.
Os ensaios de samba junino começaram em abril, mas os festejos oficiais em Salvador, com desfiles, shows e eventos comunitários, iniciam em junho, ditando o ritmo das celebrações juninas na capital e região.


